quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Sem frio, sem morte

Morto o pai, Dona Pulquéria anestesiou-se de tal forma que sequer volveu uma lágrima. Não compareceu ao leito, não chorou à beira do caixão, nem presenciou o derramamento das pás de cal sobre as flores murchando. Preferiu guardar a imagem viva de seu velho, com o cavaquinho na mão, a cerveja do lado e um cigarro aceso pousado no cinzeiro. Quando chegou a vez da mãezinha, no entanto, não teve escolha.
Meteu-se no seu xale mofado e correu à casa da velha. Estavam lá as três cunhadas, rodeando como abutres o corpo da senhorinha. Sem o drama que faziam, beijou a testa da mãe e ordenou o escoamento do cômodo. Não dava ordens questionáveis, todos sabiam. Num instante estava sozinha com a defunta, que se escondia sob um lençol amarelado.
Pulquéria tomou a bacia de esmalte escorada na parede e depositou ao lado da cama. Passou à cozinha, esquentou um pouco de água e foi dar o último banho de Dona Mariinha. Era sua obrigação. A mãezinha sempre pediu que fosse assim, que nenhuma das noras visse-lhe as vergonhas. Confiava na filha, e somente na filha.
Trancou a porta. Sem hesitar, jogou ao lado o lençol, despiu a senhora, passou as mãos por baixo do corpo e levantou a mãe contra os seios. Não pesava mais que quarenta quilos, de modo que os longos anos de trabalho na roça eram suficientes para o esforço. Com cuidado, deixou-a cair na água morna, os pés pendendo para fora da bacia. Em contato com o líquido tíbio, podia sentir a frieza da morte. Lavava os cabelos, o rosto, os ouvidos encerados, as partes. Dona Mariinha sempre se preocupou em ir bem limpinha ao encontro de Deus. O pensamento fez Pulquéria chorar depois de um longo sorriso.
Pensou no doce de abóbora guardado no armário embutido, no torresmo direto do caldeirão de ferro, nas vezes em que mijara na cama e apanhara por isso,  nos dias de colégio, na mãe brigando com a vizinha por sua causa. “Ah, mãezinha!”, suspirou, como se a velha pudesse escutar. “Que raio de vida”, reclamou, secando os pés da velhinha. “Que morte gelada!”, concluiu, secando assoando o nariz vermelho. “E ainda nem é maio”, acrescentou.
Foi quando o pensamento lhe ocorreu.
Lá fora estava quente, era fevereiro, mas dentro do quarto, por capricho, o condicionador de ar, aquela tecnologia medíocre com que o Arnaldo presenteara a mãe, estava ligado nos dezoito graus. A morte, gelada, vinha no frio. Só podia ser! Nunca vira morte quente, pense bem. Nem mesmo a tia Mercedes, que ficara presa num incêndio havia morrido lá dentro, só sucumbindo ao pular para o ar gelado da noite. Eis o mistério do fim!
Defunta lavada, maquiada, cheirosa, repleta de rosas amarelas num caixão acolchoado, Dona Pulquéria foi à capela enrolada no agasalho e no rosário. Preferia ficar ao lado da cabeça da mãe, onde as velas em pedestais ainda financiavam certo vapor. Evitava os bancos gelados e os abraços dos mais antigos. Não se encostou à sepultura, e secou bem as mãos depois de jogar uma flor orvalhada à cova. Dona Pulquéria assim cismou: não ia deixar a morte chegar-lhe! Viveria sempre quente, abafada em seu próprio calor.

Ainda hoje, se achares um sobrado de tinta amarela descascando com a chaminé esfumaçando em meados de dezembro, ou uma senhorinha agradável enrolada em, no mínimo três xales e duas blusas de lã, passeando à tardinha pela Euclides da Cunha, não erra em chama-la pelo nome. Mesmo com a toca de tricô que lhe cobre os ouvidos, os ouvidos são bons, e Dona Pulquéria responderá ao reclame. 

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